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  • Foto do escritorPsicólogo Roberto Leal

O Adolescente por trás do Ato Infracional: A Abordagem Centrada na Pessoa no Contexto do Atendimento Socioeducativo.

Atualizado: 25 de mar.


Texto publicado no Livro: Abordagem Centrada na Pessoa e Algumas de suas Possibilidades (São Paulo: All Print Editora, 2020)

Muitos sentimentos emergem ao se falar de um tema tão complexo e instigante. Certamente, a polarização política-ideológica tão evidente nos tempos atuais se escancara e, possivelmente, as defesas se montam para rechaçar ou diminuir o debate e a reflexão. O presente trabalho tem como proposta superar as resistências e os pré-julgamentos e refletir sobre a questão dos adolescentes que cometeram ato infracional, foram apreendidos e penalizados pela Justiça. Inspirado no trabalho A Pessoa por Trás do Diagnóstico (PINTO, 2010), que trata do olhar centrado não no diagnóstico, na doença, e sim na pessoa que sofre, vimos com o mesmo questionamento e chamamos o debate para este adolescente cujo olhar se reduz a sua prática em conflito com a lei, estigmatizando-o, aplicando-lhe rótulos e dificultando uma efetiva possibilidade de ressocialização quando não se vislumbram suas possibilidades e potencialidades.


Uma das temáticas mais clamorosas em nossa sociedade hoje é, sem dúvidas, a questão da violência. O índice cada vez mais elevado da taxa de criminalidade transforma as relações sociais, instaura-se a cultura do medo, que leva ao isolamento e ao prejuízo da qualidade de vida causados pela total sensação de insegurança. Muito se debate no campo das ciências sociais as questões que levam ao aumento da violência nas cidades brasileiras, a má distribuição de renda, uma sociedade cada vez mais movida pelo consumismo desenfreado, produto do sistema capitalista. Não pretendemos entrar nos meandros deste debate sociológico, contudo, gostaria de fazer um recorte no que podemos chamar de uma das ramificações da problemática citada: o envolvimento de adolescentes em práticas delituosas.


O número de adolescentes que cometeram ato infracional no Brasil é alarmante. Segundo dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) referente ao ano de 2015, mais de 26 mil adolescentes de 12 a 21 anos cumprem medidas socioeducativas1, sendo, em sua grande maioria, medidas privativas de liberdade. Neste mesmo levantamento do SINASE, é possível se observar o crescimento ao longo dos anos de 19.940 adolescentes em 2009, para os 26.868 em 2015. Chamo a atenção da leitora e do leitor aos números, para evidenciar o quanto estamos perdendo nossos adolescentes, e destacar a importância do trabalho de ressocialização focado no olhar das potencialidades, e não do estigma, do preconceito e dos rótulos.


As observações e reflexões que gostaria de discutir no presente trabalho foram motivadas a partir da experiência do autor no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do município de Mesquita, no Estado do Rio de Janeiro. O CREAS é o equipamento local da política de assistência social, onde os adolescentes que cometeram ato infracional são encaminhados pela Vara da Infância para o cumprimento da Medida Socioeducativa (MSE) em meio aberto, seja de Liberdade Assistida (LA) ou de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC).


O trabalho com adolescentes em cumprimento de MSE me permitiu abrir os olhos numa direção contrária àquela da maior parte da opinião pública, que ainda insiste numa visão meramente punitiva, onde a ideia de castigos físicos e condições desumanas de internações são bem aceitas socialmente. Condições e práticas estas que remetem ao período da escravidão no Brasil, e esta analogia é simbólica quando analisamos o perfil destes adolescentes, em sua maioria pretos e pardos.


No que tange a questão do estigma, a título de conhecimento, apresento às leitoras e aos leitores o termo popularmente adotado no Rio de Janeiro para se referir aos adolescentes em conflito com a lei: “Sementes do Mal”. Não preciso me alongar em profundas divagações para deixar claro meu incômodo e discordância com o referido termo. Convido-os a refletir sobre a fala de Rogers (1983):


"A caixa em que armazenávamos nosso suprimento de batatas para o inverno era guardada no porão, vários pés abaixo de uma pequena janela. As condições eram desfavoráveis, mas as batatas começavam a germinar — eram brotos pálidos e brancos, tão diferentes dos rebentos verdes e sadios que as batatas produziam quando plantadas na terra, durante a primavera. Mas esses brotos tristes e esguios cresceram dois ou três pés em busca da luz"


distante da janela. Em seu crescimento bizarro e vão, esses brotos eram uma expressão desesperada da tendência direcional de que estou falando. Nunca seriam plantas, nunca amadureceriam, nunca realizariam seu verdadeiro potencial. Mas sob as mais adversas circunstâncias, estavam tentando ser uma planta. (ROGERS, 1983, p. 40).

Com o exemplo de Rogers, quero explicar que este adolescente pode não ter se tornado a “planta” que se esperava, contudo, em essência, ou seja, a semente, era. Não se tornou a planta pelas condições desfavoráveis ao seu melhor desenvolvimento, e não pelo fato de que era uma semente do mal.


Pensando nas contribuições de Rogers para além da psicoterapia, vislumbramos nos pressupostos da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) a possibilidade deste olhar verdadeiro para o adolescente, em suas potencialidades, enxergando-o por trás do ato infracional, contribuindo, assim, para um trabalho significativo de ressocialização destes adolescentes. Não me convence e não me agrada a ideia de semente do mal, uma vez que, em oferecendo as condições facilitadoras no trabalho com estes adolescentes, vimos observando o quanto estes são ricos de diversas capacidades e mostram, nas atividades em grupo, os conflitos, dúvidas, inseguranças, aspirações e desejos comuns a todos que estão nesta fase tão difícil e complicada do desenvolvimento.


Com um misto de entusiasmo e doses de insegurança, iniciei minha caminhada como psicólogo no contexto das políticas públicas no ano de 2011. Vinha de uma formação voltada para a área clínica e me engajei no desafio de trabalhar na política de assistência social ainda cercado de dúvidas quanto à atuação profissional nesta área. Me debruçando nos cadernos de orientações técnicas, legislações específicas, e contando com apoio de demais profissionais experientes da área, a referida caminhada foi se tornando uma viagem satisfatória, com importantes aprendizados e inesquecíveis experiências.


Entrar em contato com situações de vulnerabilidades socais importantes provocou em mim reflexões profundas e a necessidade de revisitar minha visão da realidade até então. Passados os primeiros momentos de ambientação e capacitação, iniciei os atendimentos e acompanhamentos dos casos do serviço, que se configuravam numa formação multiprofissional, com a parceria de assistentes sociais, advogados, pedagogos, entre outros. Dentre as demandas atendidas, se destacavam as situações de violência e maus tratos contra crianças, adolescentes, mulheres e pessoas idosas, além da população em situação de rua. Conforme citado anteriormente, além das demandas mencionadas, o cumprimento de MSE em meio aberto era acompanhado pela equipe técnica do CREAS, e assim fui designado para acompanhar os adolescentes encaminhados pela Vara da Infância. Iniciava ali o que considerei como grande desafio daquela recente experiência.


O primeiro atendimento


Lembro-me do meu primeiro atendimento. Ainda impregnado com as visões da opinião pública, busquei me despir de qualquer valor pré-estabelecido, para estar inteiro e aberto para aquele momento. Peguei a pasta com toda a documentação e informações do caso, coloquei sobre a mesa, sem abri-la, optei por não tomar conhecimento daquele adolescente pelas descrições do juiz, e sim por ele próprio. Cheguei até a porta da sala de atendimento e o chamei; ele se levantou e, ao se aproximar da sala, retirou o boné, segurando-o em uma das mãos, colocou os braços para trás e baixou a cabeça de maneira tão forte que seu queixo tocava o peito. Naquele momento senti um arrepio e um desconforto muito grande, pois esta é a maneira como eles são obrigados a se apresentar em frente às autoridades nos fóruns e para os agentes de segurança, sejam policiais e/ou agentes socioeducativos.


Respirei fundo e, buscando fazer algo diferente, o abordei da seguinte forma: “Assim eu não consigo nem apertar sua mão!” E estendi minha mão para cumprimentá-lo. Um pouco confuso e sem entender aquela abordagem diferente, Arthur (nome fictício) me cumprimentou, ao passo que o convidei a se sentar. Ainda com certo desconforto, explorou a sala, observando o ambiente, e lhe perguntei se queria uma água, ou um café, ele aceitou um copo d’água e, a partir dali, me apresentei e começamos a conversar. Solicitei que se apresentasse também e me dissesse um pouco quem era o Arthur; ele me respondeu dizendo que estava tudo na pasta, apontando para o material sobre a mesa. Sorri, e de maneira cuidadosa expliquei que preferia saber por ele mesmo, quem ele era, esclarecendo que não era o Arthur “menor infrator” meu interesse, e sim no Arthur, adolescente de 17 anos e torcedor do Flamengo (pois já tinha observado que seu boné era do mais querido do Brasil). Neste instante, o adolescente abriu um sorriso, se sentiu mais à vontade para falar um pouco de si e das complexas situações vividas até a chegada ao serviço.


Os atendimentos seguiram ao longo dos 6 meses determinados para o cumprimento da medida e estabelecemos um bom vínculo. Apesar das dificuldades, Arthur retornou ao ensino regular e demonstrou interesse em cursar mecânica automotiva. O adolescente buscou ainda um trabalho informal junto a um Lava Jato, apontando descontinuidade com práticas delituosas. Não raro, eu passava em frente ao seu local de trabalho e ouvia aquele grito “Fala, Betão!”, e lá estava ele me acenando de longe, retribuía o aceno e seguia meu caminho, com a certeza de que é possível acreditar naquele trabalho e no potencial daqueles meninos.


A difícil caminhada


Citando o exemplo do meu primeiro caso de atendimento de MSE, pode suscitar à leitora e ao leitor que “tudo são flores”, como diria minha querida mãe, Dona Dora. A intenção não é passar uma imagem romantizada sobre o tema, evidenciando um caso positivo, e dar a falsa sensação de que o trabalho é simples e de fácil solução. Como disse, envolve questões complexas, do ponto de vista sociológico, e, com toda certeza, esta complexidade me mostrou que a caminhada seria difícil e desafiadora.


O destaque àquela minha primeira experiência foi no sentido de passar para o leitor a minha vivência daquele momento, os sentimentos que despertaram em mim e como eu entendi que seria minha forma de atuar com as demandas do atendimento socioeducativo, olhando para o todo, para aqueles adolescentes e todo o seu contexto social, conhecendo suas realidades, suas famílias, estando inteiro e numa relação verdadeira com eles. Entendi que somente com a convicção de que aqueles jovens eram capazes de buscar melhores escolhas, a partir de um ambiente facilitador que os permitissem explorar melhor seus anseios, seus medos e suas dificuldades, é que efetivamente eu estaria desenvolvendo um trabalho satisfatório.


Arthur foi um caso considerado como um bom acompanhamento, teve sua medida extinguida ao término do período e seguiu com escolhas diferentes o seu

caminho. Todavia, em muitos casos não obtivemos o mesmo êxito. Jovens retornaram para práticas ilícitas, foram apreendidos novamente ou assassinados. Em cada um destes casos, experimentei o peso da frustração e um sentimento de impotência diante daquela realidade social complexa.


Considero importante ressaltar que, mesmo nos casos mais difíceis e considerados sem sucesso, entendo que os momentos em que estive com estes adolescentes, neste tipo de relação a partir dos pressupostos da ACP, posso afirmar que, naqueles breves encontros, os meninos experimentaram uma relação diferente, uma atenção e um vínculo que talvez jamais tenham experienciado em suas vidas, sempre marcadas pelas situações de violência e vulnerabilidade social.


E foi pautado nesta relação intensa e verdadeira, buscando compreender empaticamente as dificuldades, tantos dos adolescentes quanto de seus familiares, que, na maioria dos casos, se resume à presença da mãe, visto que muitos não conhecem o pai, ou nem mesmo tem o nome deste no registro, que fui adentrando nestas realidades tão distantes da minha, realizando visitas domiciliares, conhecendo suas vidas in loco, no território, dentro de suas comunidades, e que fui, passo a passo, em direção ao adolescente, distanciando o olhar do ato infracional.


Possibilidade ou utopia?


Até aqui compartilhei um pouco da minha experiência no contexto do atendimento socioeducativo, sobretudo meus sentimentos e vivências desta realidade. A partir desta referida experiência, fui tomado por muitas reflexões e questionamentos acerca de intervenções, não apenas no universo micro, ou seja, a partir da minha atuação isolada no serviço, e sim numa visão macro, pensando sobre as políticas públicas, com maior comprometimento do Estado e do poder público de maneira geral.


Acredito ser possível uma transformação no nível macro, contudo, é importante reputar que esta se desenvolve a partir das ações micro. Uma mobilização mais efetiva dos profissionais atuantes em todos os setores das políticas públicas, visto que não se tratam somente de questões da política de assistência social, o adolescente em debate carece de educação e de saúde públicas de qualidade, além do acesso à cultura, esporte e lazer. Neste sentido, o fortalecimento da rede intersetorial é extremamente necessário para o alcance dos mínimos sociais destas famílias. Em atendendo estas demandas, é possível provocar o empoderamento das famílias em suas comunidades, para que também elas sejam agentes neste processo de mudança e construção de políticas públicas em consonância com suas realidades e atendendo, de fato, suas necessidades.


Num sentido provocativo, o que chamo de Utópico para reflexão junto à amiga leitora e ao amigo leitor é a questão da “vontade política”. A mobilização sociocomunitária é fundamental para a construção e a proposição de políticas públicas, todavia esbarramos na vontade política dos gestores, seja no nível municipal, estadual, ou no âmbito federal. Como mencionei anteriormente, desde 2011 atuo nesta luta e sei o quanto é difícil vencer os obstáculos políticos, cujos interesses da parte da política partidária quase sempre se sobrepõem à formulação de políticas públicas.


Vale ressaltar que existe um conceito muito arraigado em nossa sociedade ainda pautado numa visão excludente e punitivista, que não vislumbra ações preventivas, que em geral requerem mais tempo de maturação para o desenvolvimento satisfatório. Desta forma, seguem alimentando e acenando positivamente com intervenções pouco ou quase nada produtivas do ponto de vista de uma transformação social. Em outras palavras, é mais fácil aplicar a palmatória do que construirmos juntos uma forma diferente de lidar com a realidade.


Ainda no que se refere à visão excludente, importante frisar que, na nossa história recente, existiam os grandes hospitais psiquiátricos, cuja essência nunca foi o tratamento ou cuidado, e sim a mera exclusão social. Neste exemplo, podemos voltar sobre a mobilização de profissionais para a transformação daquela realidade que, a partir da luta antimanicomial, foi possível uma reforma psiquiátrica e o fim dos grandes manicômios.


Cito a luta antimanicomial como um contraponto à utopia sinalizada anteriormente. Entretanto, vale lembrar que a lógica manicomial e excludente segue presente de maneira significativa em nossa sociedade, e talvez aqui resida meu desejo (quase) utópico: construirmos uma sociedade mais inclusiva, menos conservadora.


Considerações finais


Para concluir, gostaria de retomar os meus sentimentos e vivências desta experiência no atendimento socioeducativo. Sinto-me inclinado a compartilhar que, em todos os encontros, sejam os atendimentos individuais, ou as atividades em grupo, em nenhum momento me senti ameaçado ou amedrontado. Meus medos residiam no fato de não conseguir me fazer claro para aqueles adolescentes sobre o quanto eu acreditava em seus potenciais. Meus anseios se reportavam ao meu desejo quase utópico de desconstruir o olhar da sociedade frente a esta realidade. Minha angústia era perceber a total ausência ou fragilidade de políticas públicas importantes para o cuidado com estas comunidades e seus membros.


Não é possível que aceitemos pacificamente que cada vez mais adolescentes se desviem do caminho da escola para o do crime e só pensemos na privação da liberdade e/ou extermínio. É urgente que deixemos de atacar os sintomas e comecemos a tratar a causa. A responsabilidade é coletiva, é de todos. Se a amiga leitora e o amigo leitor se sentem indignados com esta realidade e querem fazer parte de uma transformação, entendam que o que chamamos de política pública é algo que é construído coletivamente. Existem instâncias de controle social pouco conhecidas e pouco divulgadas, são os conselhos de políticas públicas, em todos os níveis de governo. Conselho de Saúde, de Educação, de Assistência Social, entre outros, estão presentes nas cidades e, nessas instâncias, temos direito à voz e a contribuir efetivamente para uma possível transformação social. Informem-se sobre os conselhos de seu município.


É claro que, quando questiono a lógica puramente punitivista, não estou considerando que o adolescente em conflito com a lei não seja responsabilizado pelo seu ato. Importante destacar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a responsabilidade do adolescente, bem como a devida punição, que vai desde advertência até a privação da liberdade, sendo esta última a mais aplicada dentre aqueles que cumprem medida socioeducativa, conforme os dados do SINASE. Portanto, é equivocada a noção de que o ECA é brando e não vislumbra a responsabilização do adolescente. Muito se questiona sobre o prazo máximo de 3 anos para cumprimento da medida, porém pouco se importam quanto às condições das instituições de internação. Pouco se critica o não acesso e fomento às práticas verdadeiramente socioeducativas.


Horror, violência e exclusão é o que se configura nessas instituições. A noção de ressocialização não se faz presente nestes ambientes, e muito menos em relação à maior parte da opinião pública, que aplaude quando as forças de segurança executam um jovem diante das câmeras de TV. Que vociferam a plenos pulmões que “bandido bom é bandido morto”. E este brado tem sido a diretriz de nossa política de segurança, a execução sumária desses bandidos, ou o encarceramento em massa em condições desumanas, sem a mínima possibilidade de ressocialização.


Não podemos deixar de considerar que o bandido bom é bandido morto em questão quando ele tem cor de pele e tem classe social, assim como os adolescentes em conflito com a lei que não deixam de ser este bandido ou a semente do mal.


Voltando a refletir sobre uma Utopia, creio que esta resida, na verdade, nesse imaginário social de que, executando e/ou encarcerando, vamos finalmente alcançar o fim da violência. Construam-se mais presídios, municiem-se mais os fuzis, e logo vamos extirpar estes delinquentes da nossa sociedade. Simples assim. Será que falta pouco para acabar?


A privação da liberdade já é uma punição extremamente significativa. Ofertar condições desumanas de internação ou encarceramento não permite uma possibilidade de ressocialização. Precisamos entender que, por mais punitivo que seja, nosso ordenamento jurídico prevê prazos para cumprimento de penas, sejam das mais brandas às mais graves.


Retomando o debate sobre os adolescentes, como queremos que eles retornem para a sociedade? Cumprindo uma medida que permita exploração de potencialidades, ofertando acesso e qualidade à escolarização e profissionalização, ou cumprindo uma medida que mais se assemelha à escravidão: tronco e chibata? Se nossa sociedade seguir acreditando e alimentando a segunda opção, então as munições e os fuzis não serão suficientes, e continuaremos a ver sangue de jovens no chão e nas telas da TV. Como diria Chorão, líder da banda Charlie Brown Jr., “[...] na verdade, todo mundo quer ver sangue. Ver sangue é que é legal. Todo mundo para, para ver o caos”.


Antes da privação de liberdade, vem uma série de privações. Privação de serviços públicos de qualidade, privação de voz, privação de direitos. Em geral, não questionamos estas privações, ainda conseguimos pinçar um exemplo muito resiliente daquele que superou todas as adversidades e conseguiu seguir um caminho diferente, se tornando uma “planta”, mesmo sem água, luz solar e terra bem adubada. O que é uma exceção passa a ser uma regra; se esta planta conseguiu crescer sem as condições, as outras também conseguem. E assim se alimenta uma lógica que silencia sobre a não garantia e a falta de acesso a direitos fundamentais, mas questiona o desvio aos deveres. Que pune severamente o desviante do dever e ameniza o não garantidor do direito. Direito? Tem de conquistar por mérito, brada nossa sociedade, esquecendo-se de que até o afeto à criança lhe é negado, que o brincar lhe é impedido, e o sorrir não lhe é permitido.


Adolescentes em conflito com a lei foram, em sua grande maioria, constituídos na dor, na falta, na violência, na privação em todos os sentidos e, não obstante, o da liberdade no futuro. Uma vez um adolescente me disse: “Eu entrei pro tráfico não foi por causa de dinheiro, foi pra ser respeitado”. Indaguei se, com um fuzil no peito, era mais fácil ser respeitado, e o mesmo me diz: “Tá vendo!”. Eu vi que talvez só o Respeito já pudesse pavimentar um destino diferente para muitos jovens das comunidades.


Penso que meu maior desafio não foi estar com aqueles adolescentes e construir com eles outras possibilidades. Meu maior desafio foi e continua sendo ampliar estas reflexões para a construção de uma sociedade menos intolerante, mais crítica e, acima de tudo, que faça valer o previsto em lei, a proteção integral de crianças e adolescentes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BRASIL. Levantamento Anual SINASE 2015. Brasília: Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos, 2018.


BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/marco/mdh-divulga-dados-sobre-dolescentes-em-unidades-de-internacao-e-semiliberdade. Acesso em: 30 out. 2019.


PINTO, Marcos A. S. “A Pessoa por Trás do Diagnóstico”. In: CARRENHO, Esther; TASSINARI, Marcia; PINTO, Marcos A. S. Praticando a Abordagem Centrada na Pessoa: Dúvidas e perguntas mais frequentes. São Paulo: Carrenho Editorial, 2010.


ROGERS, Carl R. Um Jeito de Ser. São Paulo: EPU, 1983.

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